Não poderia deixar de iniciar essa reflexão sobre a morte sem lembrar e mencionar a afirmação de Espinosa em seu livro Tractatus theologico – politicus: “Um homem livre em nada pensa menos do que na morte e sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida”.
Nenhum homem tem a consciência ou conserva a lembrança do seu nascimento. Nenhum homem, enquanto viver neste mundo, terá a experiência da própria morte. Pois, nenhum homem, humanamente falando, preexistiu ou sobreviveu a si próprio. Mas uma coisa é certa, todas as vidas, inclusive as das pessoas que amamos, têm um fim, a morte. Ela é um fato da nossa existência mesmo sendo encarada como “passagem para uma outra vida”.
A morte é, também, algo individual e intransferível. Ninguém é capaz de morrer a minha morte. Isto é, é impossível que alguém, com sua própria morte, possa evitar a outro definitivamente o transe de também morrer, mais cedo ou mais tarde. Alguém deve se lembrar da história, por exemplo, do padre Maximilian Kolbe que, como contou Savater (2001), de forma resumida, se ofereceu como voluntário num campo de concentração nazista para substituir um judeu que estava sendo levado para a câmara de gás. Ora, ele apenas o substituiu diante dos carrascos, mas não diante da própria morte. O vivo morre sua própria morte. E é importante salientar que a morte não é “coisa de velho e de doente”: a condição para morrer é estar vivo. E se a cada nascimento surge no mundo algo único, a cada morte desaparece algo que nunca voltará a ser.
Apesar de compartilhar o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com outros seres vivos, o ser humano é o único que sabe que vai morrer. Deste modo, a morte pode ser classificada como um problema exclusivamente humano. Mesmo assim, em si mesma, ela não incomoda o homem, o que o incomoda é a certeza de que ele vai morrer. É a imagem antecipada da morte que causa temor. Ora, é exatamente nisso que praticamente consiste a vida. É por isso que Elias (2001) observou que uma pessoa está preparada para acreditar com devoção profunda, em qualquer coisa, por mais “bizarra” que seja, desde que lhe proporcione esperança numa forma de “vida eterna”.
Muitas perguntas foram feitas sobre a morte e muitas lendas foram criadas. Ela se tornou a base de quase todas as religiões. Em todos os tempos e em todos os lugares a religião serviu, basicamente, para dar sentido à morte. Muitos pesquisadores, inclusive, afirmam que se a morte não existisse, não haveria “deuses”. Hoje, as religiões prometem “vida eterna” para quem tenha cumprido os preceitos da divindade. Todavia, essa tal promessa de “vida eterna”, sem mudanças e oscilações, significa, no fundo, uma eterna existência ou duração, o que não é a mesma coisa que a vida humana, que nossa vida. Dentro dos parâmetros do humano é impossível conceber vida sem a morte. Como ressaltou Savater (2001), a única vida eterna compatível com nossa personalidade individual seria uma vida em que a morte estivesse presente, mas como possibilidade perpetuamente adiada, algo sempre temível, mas que de fato nunca chegasse. A nossa vida é única, desejar uma vida eterna como se ela fosse um prolongamento da nossa vida é, no fundo, rejeitar ou disfarçar, de certa maneira, a nossa condição de mortalidade, ou seja, nossa própria humanidade.
Será que o homem deve mesmo temer a morte? Esta é uma questão pessoal. Depende da maneira como cada um vê o problema. Para Epicuro, por exemplo, a morte não deve ser temida. Afinal, nunca coexistimos com ela. Enquanto nós estamos, ela não está; quando ela chega, nós deixamos de estar. De acordo com esse ponto de vista, terrível seria ficar consciente da morte, seria alguém ficar de algum modo presente, mesmo sabendo que já se foi totalmente. Muitas pessoas se angustiam com a idéia da morte pelos “prazeres” da vida que vão perder, quando pensam na própria morte e pelas perdas das pessoas “amadas”, quando pensam na morte alheia. Ora, temida ou não, a morte sempre remete o homem às questões da vida. Assim, ela deve ser encarada como algo que permite pensar o “sentido da vida”.
Mas o que quer dizer “sentido da vida?”. Será uma preocupação com a vida em geral? Uma preocupação com o mundo? Não. Em geral, o “sentido da vida” se reduz, essencialmente, à vida humana. É uma preocupação com a vida e o mundo dos seres humanos. É uma indagação que procura saber, basicamente, por exemplo, se existe algo além e fora da vida ou só a tumba, como parece evidente. Ora, a vida tem sentido em si mesma e não fora dela: no viver e no querer viver. Por isso que o homem deve viver para alcançar a plenitude da vida na brevidade do tempo, e não para a morte ou para a eternidade.
Como mencionei anteriormente, apenas o homem tem a consciência do seu ser mortal. Uma consciência que lhe traz angústia, desespero e medo diante de todas as possibilidades que ameaçam acelerar o seu fim, e uma tendência para agarrar em tudo que lhe oferece proteção. Um comportamento desnecessário, pois não consegue livrá-lo de seu destino fatal. Apenas consegue introduzir o mal-estar da morte em cada momento da vida, inclusive em seus maiores prazeres. Não se deve permitir que a certeza da morte ofusque a certeza da vida. A morte tem o “poder” de impedir, um dia, que o homem continue vivendo, mas ela é incapaz de impedir que agora ele esteja vivo nem que ele já tenha vivido. Portanto, o homem precisa exaltar e afirmar a presença da vida com alegria e entender que a maior graça é a de ter nascido.
José João Neves Barbosa Vicente – josebvicente@bol.com.br
Filósofo, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
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