É legítimo matar um guarda para roubar o banco? Não, evidentemente. É legítimo mobilizar um exército para salvar a vida de um só mergulhador em dificuldade? Sim.
Na sua obra O príncipe, Maquiavel não hesita em responder sim às questões como: é legítimo mentir para não desesperar o próximo, suprimir algumas vidas para salvar outras, roubar de um homem rico para impedir que morra de fome um pobre? É, portanto, em nome da moral que Maquiavel solicita ao político para exercitar sem tremer as ações mais cruéis. Para ele, um fim em conformidade com o bom direito justifica sempre os meios abomináveis. Por exemplo, Cipião, doce e compassivo, não pode impedir na Espanha uma revolta terrível de seus soldados. Usando apenas meios morais, deixou correr em vão muito sangue. Ao contrário, Aníbal, que punia com a morte seus soldados à menor insubordinação, teve um exército poderoso, disciplinado, "no qual nunca se levantou uma única discussão". A "desumana crueldade" tornava-o "venerável" aos olhos de seus soldados e em todas as circunstancias preserva a ordem.
No espírito de Maquiavel esse princípio se aplica essencialmente à política. A política põe em jogo interesses consideráveis e vitais em referencia a nações inteiras. É neste domínio que hoje ainda se encontra os casos de consciência em que os princípios maquiavélicos parecem justificados a algumas pessoas. A guerra defensiva, por exemplo, pretende salvaguardar por meios sangrentos uma nação injustamente atacada. Assim, a explosão da bomba atômica em Hiroshima custou a vida de centenas de milhares de japoneses mas pôs fim a uma guerra desenvolvida pelo imperialismo agressivo da casta militar do Japão que, sem isto, teria continuado por meses ainda, e sem dúvida feito um número maior de vítimas. Que pensar destes policiais que torturam um terrorista que acabam de prender? Em algumas horas uma dezena de bombas explodirá e matará ou ferirá muitos inocentes. Os policiais querem saber onde foram colocadas estas bombas a fim de desligá-las. Julg am-se, portanto, justificados de tentar obter do terrorista, por todos os meios, as confissões circunstanciadas. Se a moral se baseia em uma espécie de aritmética, se repousa sobre a compatibilidade do bem e do mal, se é uma técnica da felicidade, a fórmula maquiavélica é justificada e o agente moral aceitará cometer um mal menor para obter um maior bem.
O policial que pela tortura arranca a confissão do terrorista é responsável por sua violência, mas o que renuncia a tortura, que não obtém a confissão e deixa as bombas explodir retardatariamente, é responsável indireto pelas desgraças subseqüentes; responsável porque lhe competia evitar estes estragos. O parteiro que sacrifica a criança para salvar a mãe é responsável; mas se dirá que aquele que deixa morrer a mãe não é responsável por este acidente sob o pretexto de que ele não mata, mas "deixa morrer"? Tais argúcias não merecem nem se quer exame. O que fica certo é a complexidade da vida moral, tal que nem mesmo o santo é totalmente "inocente". Não está Maquiavel incidindo num preconceito pessimista quando repete que seu princípio é justificado pela insensatez e maldade dos homens? Para o "príncipe" o fim justifica os meios porque seus súditos são "volúveis, dissimulados, ávidos de lucros" e "aquele que quiser fazer inteiramente profissão de homem de bem não poderá evitar seu próprio dano entre tantos outros que não o são". Não se poderá por vezes dar um voto de confiança aos bons sentimentos dos homens e à sua inteligência? A generosidade, a lealdade, a confiança, mesmo em política, são sempre mal recompensadas? Como o pessimismo, o otimismo é uma aposta. Maquiavel não conseguiu mostrar a evidencia de sua opção pessimista.
Nem a moral dos fins indiferentes aos meios, nem a moral dos meios indiferentes aos resultados são satisfatórias. Hamelin dizia que a atividade técnica subordina o meio ao fim, a atividade artística o fim ao meio, a atividade moral leva em conta igualmente o fim e os meios. A moral só é perfeita nestas condições e devemos admirar sem reserva Gandhi que, fiel à não-violência, conseguiu mesmo assim expulsar da Índia os ingleses. A conduta moral perfeita tem simultaneamente a elegância de uma obra de arte e a eficácia de uma técnica.
José João Neves B. Vicente - josebvicente@bol.com.br.
Filósofo, pesquisador, professor da Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER), do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC) e editor da Revista Facer.
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