De um modo geral, a mentira está diretamente associada ao conhecimento do verdadeiro e à vontade que escolhe escondê-lo para enganar outrem.
Não se deve considerar, por exemplo, uma simples alteração do verdadeiro como sendo uma mentira. Pois, se assim fosse, os poetas e os romancistas, infelizmente, seriam todos mentirosos. Para que haja mentira, portanto, é mister intenção de enganar terceiros.
Para Kant, a mentira é uma degradação e aniquilamento da dignidade humana. Ela sacrifica toda relação razoável entre os homens, por isso ela deve ser condenada de forma total. A mentira não se encaixa, por exemplo, na primeira fórmula do imperativo categórico do filósofo: “Age sempre de tal modo que a norma de teu proceder possa erigir-se em regra universal”. Ou de outro modo, antes de agir pergunta a ti mesmo: “E se todo o mundo procedesse assim?”. Ora, qualquer um é capaz de perceber que a prática universal da mentira tolhe todo valor e toda significação à palavra humana, instrumento privilegiado de nossas permutas. Querendo ou não, com a mentira a sociedade perde todo o fundamento lógico. A reciprocidade nas relações humanas deixaria de existir.
No fundo, ninguém mente sem “motivo”, mesmo o mitômano, que o faz por “prazer” ou para dar imagem lisonjeira de si mesmo. O mentiroso não sacrifica a verdade ao vazio, sacrifica-a àquilo que se poderia chamar um “bem parcial”. Tudo está em saber o que vale este “bem”, se se trata sempre de um valor puramente egoísta. Sem ser um gênio, uma pessoa é capaz de entender que a mentira é um sucedâneo da “verdade”. Ou seja, ela visa exatamente ao mesmo resultado, estabelecer entre os homens a confiança e a harmonia. O que “força” alguém a mentir é o sentimento da impossibilidade que têm os outros de compreender inteiramente sua ação.
Muitos invocam a “mentira de polidez”, como a de Filinto, que, rejeitando a brutal sinceridade de Alceste, sabia arredondar ângulos, maneirar suscetibilidades, poupar as vaidades. Para Pascal, os homens não poderiam subsistir se soubessem tudo o que pensam uns dos outros. Existe ainda a chamada “mentira de caridade”, como a do médico que promete ao doente sem cura uma melhora próxima; a “mentira de honra” do sacerdote ou do advogado para proteger o segredo profissional; a “mentira política ou patriótica”, como a do rei Creon, em Antígone de Anouilh, que, traído por Etéocle e Polinice, propaga no entanto o mito do “bom irmão”, porque a opinião pública, para não entrar em desespero, reclama um h erói para compensar o traidor. Como se vê, a mentira se coloca muitas vezes a serviço da própria intenção moral.
A reflexão sobre o problema da mentira torna difícil devido a “pluralidade dos valores”. Na sociedade há valor da caridade, da polidez, da honra, da verdade... valores que conflituam-se entre si e que podem tornar a mentira escusável e quiçá às vezes necessária. Recordemos o exemplo clássico de Santo Atanásio perseguido pelos Arianos. Ele se refugia, cujo proprietário, um pouco depois, é interrogado pelos Arianos. Na opinião dos casuístas, o proprietário tem o dever de salvar o homem que abriga, mas evitará a “mentira brutal”, usando palavras equívocas ou a “restrição mental”. Ora essa atitude é hipócrita e demonstra mentira porque existe intenção expressa de enganar alguém. Porém para muitos, a mentira dita para salvar uma vida humana é perfeitamente legítima.
Muitos afirmam ainda, que a mentira deve ser permitida quando é o único meio de preservar um “valor precioso”. Quem permite essa regra, permite a mentira. A mentira deve ser entendida sempre, não como uma marca de fraqueza, uma confissão de impotência, uma tentativa de salvar ou de ajudar, mas como uma solução imediata para problemas espinhosos e, que, felizmente, coloca seu autor em situação difícil no futuro. Mentira pode facilitar no instante presente, mas multiplica as dificuldades para um período de tempo mais longo. Extrema fadiga experimenta-se em mentir, pois se torna necessário adaptar e construir todas as palavras em função da primeira mentira. E como as construções da mentira são falsas, é preciso confirmá-las a todo o momento e proteger o castelo de papelão contra os desmentidos do real. Todas as mentiras são desonestas e inúteis.
José João Neves B. Vicente – josebvicente@bol.com.br.Filósofo, pesquisador, professor da Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER), do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC) e editor da Revista Facer.
Não se deve considerar, por exemplo, uma simples alteração do verdadeiro como sendo uma mentira. Pois, se assim fosse, os poetas e os romancistas, infelizmente, seriam todos mentirosos. Para que haja mentira, portanto, é mister intenção de enganar terceiros.
Para Kant, a mentira é uma degradação e aniquilamento da dignidade humana. Ela sacrifica toda relação razoável entre os homens, por isso ela deve ser condenada de forma total. A mentira não se encaixa, por exemplo, na primeira fórmula do imperativo categórico do filósofo: “Age sempre de tal modo que a norma de teu proceder possa erigir-se em regra universal”. Ou de outro modo, antes de agir pergunta a ti mesmo: “E se todo o mundo procedesse assim?”. Ora, qualquer um é capaz de perceber que a prática universal da mentira tolhe todo valor e toda significação à palavra humana, instrumento privilegiado de nossas permutas. Querendo ou não, com a mentira a sociedade perde todo o fundamento lógico. A reciprocidade nas relações humanas deixaria de existir.
No fundo, ninguém mente sem “motivo”, mesmo o mitômano, que o faz por “prazer” ou para dar imagem lisonjeira de si mesmo. O mentiroso não sacrifica a verdade ao vazio, sacrifica-a àquilo que se poderia chamar um “bem parcial”. Tudo está em saber o que vale este “bem”, se se trata sempre de um valor puramente egoísta. Sem ser um gênio, uma pessoa é capaz de entender que a mentira é um sucedâneo da “verdade”. Ou seja, ela visa exatamente ao mesmo resultado, estabelecer entre os homens a confiança e a harmonia. O que “força” alguém a mentir é o sentimento da impossibilidade que têm os outros de compreender inteiramente sua ação.
Muitos invocam a “mentira de polidez”, como a de Filinto, que, rejeitando a brutal sinceridade de Alceste, sabia arredondar ângulos, maneirar suscetibilidades, poupar as vaidades. Para Pascal, os homens não poderiam subsistir se soubessem tudo o que pensam uns dos outros. Existe ainda a chamada “mentira de caridade”, como a do médico que promete ao doente sem cura uma melhora próxima; a “mentira de honra” do sacerdote ou do advogado para proteger o segredo profissional; a “mentira política ou patriótica”, como a do rei Creon, em Antígone de Anouilh, que, traído por Etéocle e Polinice, propaga no entanto o mito do “bom irmão”, porque a opinião pública, para não entrar em desespero, reclama um h erói para compensar o traidor. Como se vê, a mentira se coloca muitas vezes a serviço da própria intenção moral.
A reflexão sobre o problema da mentira torna difícil devido a “pluralidade dos valores”. Na sociedade há valor da caridade, da polidez, da honra, da verdade... valores que conflituam-se entre si e que podem tornar a mentira escusável e quiçá às vezes necessária. Recordemos o exemplo clássico de Santo Atanásio perseguido pelos Arianos. Ele se refugia, cujo proprietário, um pouco depois, é interrogado pelos Arianos. Na opinião dos casuístas, o proprietário tem o dever de salvar o homem que abriga, mas evitará a “mentira brutal”, usando palavras equívocas ou a “restrição mental”. Ora essa atitude é hipócrita e demonstra mentira porque existe intenção expressa de enganar alguém. Porém para muitos, a mentira dita para salvar uma vida humana é perfeitamente legítima.
Muitos afirmam ainda, que a mentira deve ser permitida quando é o único meio de preservar um “valor precioso”. Quem permite essa regra, permite a mentira. A mentira deve ser entendida sempre, não como uma marca de fraqueza, uma confissão de impotência, uma tentativa de salvar ou de ajudar, mas como uma solução imediata para problemas espinhosos e, que, felizmente, coloca seu autor em situação difícil no futuro. Mentira pode facilitar no instante presente, mas multiplica as dificuldades para um período de tempo mais longo. Extrema fadiga experimenta-se em mentir, pois se torna necessário adaptar e construir todas as palavras em função da primeira mentira. E como as construções da mentira são falsas, é preciso confirmá-las a todo o momento e proteger o castelo de papelão contra os desmentidos do real. Todas as mentiras são desonestas e inúteis.
José João Neves B. Vicente – josebvicente@bol.com.br.Filósofo, pesquisador, professor da Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER), do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC) e editor da Revista Facer.
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