Tuesday, January 12, 2010

CRISTIANISMO: NÃO SE ENGANE


No livro de João 8:58 está escrito: “Respondeu-lhes Jesus: em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU”. Em seu livro, Tratado teológico – político, Espinosa escreve: “... como andam quase todos fazendo passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem como eles”.
Para o cristianismo somos todos “livres”. Mas, atenção! Não somos autores de nós mesmos: somos “criaturas”. Sendo assim, a nossa liberdade consiste, essencialmente, em submeter-se a Deus, como sabiamente ensinou Agostinho. Sendo assim, quem não reconhecer essa dependência cai, necessariamente, na ilusão da liberdade. Dentro da perspectiva cristã, o homem deve elevar-se à Deus e viver a Verdade e o Amor: Deus “criou” o homem para Ele. É como disse Agostinho: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”. Portanto, para o cristianismo o homem precisa procurar Deus, mas isso só será possível através do uso da sua liberdade, ou seja, a “união” entre Deus e o homem só é possível no campo da liberdade. O primeiro e o maior exemplo da livre submissão e do consentimento do homem ao ingresso de Deus em seu mundo decaído, como “Causa Recriadora”, foi o assentimento da Virgem Maria: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Portanto, a arrancada inicial para a regeneração humana foi dada através de um ato de liberdade e, de então para cá, ninguém merecerá a redenção a não ser por um ato livre, a exemplo de Maria.
Essas breves observações fazem do cristianismo uma religião singular, sublime e humana. Todavia, com a globalização da ganância e da vontade em transformar tudo em “capital”, institucionalizaram o cristianismo, expulsaram Cristo do seu seio, adulteraram os conteúdos do Evangelho da Graça e passaram a prometer não a salvação, a paz, a harmonia, o amor e a fraternidade, mas o enriquecerem em nome de Deus. Essas práticas gananciosas e desenfreadas não ameaçam apenas a essência do cristianismo, mas o mundo em si através de aumento da hostilidade, cobiça, inveja, mentira, ódio, violência, guerras e assassinatos.
Algumas “instituições religiosas” entendem que viver segundo o cristianismo significa caminhar, necessariamente, rumo à riqueza material. Assim, promovem shows, gritos, persuasão onde um “convertido” passa horas discursando sobre sua condição de “convertido” e não sobre Cristo, exibicionismo, insistência, disputas de audiências, acusações, testemunhos e demonstrações de curas forjados, exposição excessiva na mídia,... atitudes que deixam para o segundo plano, ou quem sabe, para plano nenhum, o compromisso de fé e vida com o Evangelho de Cristo. As expressões “evangélicos” e “evangelizar” se transformaram em “símbolos” dos “escolhidos” e da “diferenciação”. “Evangélicos” são considerados todos aqueles que pertencem a uma determinada “igreja cristã” (na sua maioria de origem protestante). Grosso modo, os “cristãos” não católicos e não necessariamente o Povo das Boas Novas de Cristo; “evangelizar”, significa insistir e, principalmente, contribuir para o crescimento numérico dos famosos “irmãos” e não necessariamente anunciar o Evangelho, levar às pessoas a consciência da Graça salvadora de Cristo e da possibilidade da experiência da liberdade salvadora, tanto na perspectiva individual, como também na comunitária, cujo resultado não é, aumentar o número de “irmãos”, mas uma nova criatura, que o Espírito da Graça, em Cristo faz nascer. Evangélico e evangelizar são possibilidades abertas para qualquer um. Não são privilégios da igreja X ou Y. Quem evangeliza, independentemente da igreja a que pertence é evangélico.
A cruz de Cristo representa a ausência da oposição, da mentira, do acúmulo de “riqueza material”, da ganância, da diferenciacao e da disputa. É um dom de Deus que habita doravante em cada um, como num “santuário” (1Co 1.18-24; 2.12; 3.16; 6.19). Todos os homens formam apenas um único corpo que se restabelece num só espírito. A Epístola aos gálatas será mais imperiosa na negação dos particularismos e dos interesses dos povos que encontram todos a salvação em Cristo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher: pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3.28). Ao que responde pela última vez, a Epistola aos colossenses: “Aí não há mais grego e judeu, cir cunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo em todos”(Cl 3.11). Esse homem que não é mais judeu, grego ou bárbaro, que se retira do espírito do mundo para receber, em seu santuário, o Espírito que vem de Deus é definido pela primeira vez por Paulo, como um “homem interior” que se apreende a si mesmo graças à “lei de Deus” (Rm 7.22). Portanto, enquanto para a tradição órfica grega, ainda presente em Platão (1975), o corpo era apenas o “túmulo” da alma e, portanto, um sepulcro vazio, o cristianismo ensina que o próprio corpo é um “santuário” que cada homem recebe de Deus de tal maneira que o Espírito de Deus habita realmente cada corpo.
“O homem interior” é mais profundo ainda, e insondável, pois ele se renova à medida que o corpo, esse “homem exterior”, se destrói (2 Co 4.16). Paulo toma como modelo do homem interior, de que fala ainda última vez na Epístola aos efésios, o que Pedro chamava “o ser escondido no fundo do coração” para designar o que tinha um “preço” no homem aos olhos de Deus. O homem novo ou o homem interior aparece assim, como um ser espiritual que o homem “batizado” descobre em si e que se enriquece a cada dia pela graça do Espírito Santo que o anima descendo nele. Portanto, não é o homem cuja meta é acumular “bens materiais”; não é o homem de disputa desenfreada; não é o homem ganancioso e interesse iro; não é o homem que aproveita da fraqueza e da falta de conhecimento dos outros para se beneficiar, não é o homem que entende ser a sua religião a melhor, não é o homem que se considera evangélico (protestante) ou católico, não é o homem rico nem pobre. Homens assim são inimigos e adulteradores do cristianismo. Para o cristianismo, o Espírito, pela Graça, vem preencher o homem que não é mais deixado na solidão. Assim, a interioridade paradoxal do cristão consiste na abertura ao totalmente outro, do qual sente a todo instante a glória, já que, segundo a fórmula de Paulo, “Ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo” (Rm 14.7). É preciso discernimento para entender o cristianismo, para não ser escravo, enganado e usado para beneficiar interesses particulares sob a aparência ou a ilusão de estar sob a Graça salvadora de Cristo e experimentando a liberdade – salvadora.

José João Neves Barbosa Vicente – josebvicente@bol.com.br
Filósofo, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

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