Wednesday, January 27, 2010

O ABORTO, O DIREITO E A CONSCIÊNCIA


“Pela lei natural da Natureza”, afirmou o filósofo inglês J. Locke em Two treatsises of civil governement (1966), “o Homem deve ser preservado tanto quanto possível”. Penso que é uma boa citação  para iniciar esta reflexão sobre a vida humana cujo valor encontra-se nela mesma.
 A vida humana (e a vida de todos os seres em geral) não deve ser entendida como o que “deve ser”, mas como o que “é”. Quero dizer com isso que ela não é, e nunca será em nenhuma circunstância, um direito. Sendo assim, os “doutores” da lei não devem tratá-la em termos de direito.  A expressão “direito à vida” comumente usada, pode ser “generosa” e “sentimental”, mas  não faz sentido efetivo. Comte em Discours sur l’ensemble du positivisme (1984) já dizia que em nome do direito a pessoa reclama mais do que lhe é devido; encontra álibi para impor a própria vontade, aumentar o “poder”, o egoísmo e a inveja. Todavia, quem estudou e  entendeu o sentido do Direito, certamente entendeu, também, que ele trata de “coisas” possíveis. Fazendo um raciocínio lógico elementar, chega-se a seguinte conclusão: só se pode ter direito ao que é possível. Posso ter direito à moradia porque alguém pode me garantir isso. Ou seja, se não tenho um lugar para “morar”, posso “reclamar”, em termos de direito, uma “moradia”; posso, também, reclamar, em termos de direito, os cuidados médicos. Porém, uma pessoa não pode, por exemplo, exigir em termos de direito, se tornar um Platão, Amílcar Cabral, Newton ou Einstein porque ninguém pode garantir isso a ela.
            Uma pessoa com uma doença qualquer em fase terminal tem direito à vida? Ou melhor, faz algum sentido falar em direito à vida nessa circunstância? Ela pode exigir a vida através da contratação de um advogado? O advogado é capaz de garantir a ela tal exigência? É claro que não. Por  hipótese, ninguém está capacitado para salvá-lo. Deste modo, não faz sentido ela exigir, em termos de direito, a vida. Por outro lado, ninguém tem o dever de lhe garantir tal vida, pois não há  possibilidade jurídica para isso. Se a vida é um direito, ou melhor, se ela  deve ser exigida em termos de direito, alguém precisa responder as indagações de Comte – Sponville em Uma educação filosófica (2001): a que tribunal os moribundos deverão apresentar suas queixas? E contra quem? A morte não tem deveres, por isso, a vida não é um direito. Ainda na perspectiva de Comte – Sponville, a idéia de um “direito à vida” pressupõe uma idéia  da morte como se ela fosse uma violação do direito. Ou seja, um crime. O que significaria, no fundo, uma incompreensão do sentido da vida como algo que supõe necessariamente a morte desde o começo como sua condição. Pode-se, no entanto, como disse Conche em Le fondement de la morale(1993),  falar em direito à segurança e aos cuidados médicos. Afinal, até um certo ponto, alguém tem obrigação de garantir tais direitos. Mas para com o impossível não existe obrigação. Portanto, o direito precisa tratar (e bem) das “coisas do direito” e deixar a vida propagar para que o próprio direito possa continuar a existir. O que importa é a vida. Porém, o homem precisa  encontrar-se no mundo. Não o mundo como a “natureza”, mas o vivido como tal. Encontrar-se no mundo de forma concreta: ocupar-se com algo. Afinal, no fundo, o homem consiste em ocupar-se com o que há no mundo e o mundo consiste em tudo aquilo de que ele se ocupa. E ocupar-se com algo, quer dizer exatamente ocupar-se com  aquilo que é possível. Por isso como disse Ortega y Gasset em Qué es filosofia (1980), “viver é conviver com uma circunstância”. É encontrar-se num mundo que oferece possibilidades.  O direito deve fazer parte desse mundo e estar ao serviço d a vida no sentido de servi-la.
Em vez de  leis que  ceifam vidas, alegando deformações no futuro bebê, estupro... Deveriam existir verbas para pesquisas sobre tais deformações, no sentido de apaziguá-las e, também, verbas para serem investida na proteção da “sociedade” contra o crime. Porém,  para muitos, economicamente falando, é mais viável destruir uma vida indefesa do que investir para descobrir e sanar as causas da sua deformação. É a diabólica “vitória” do material sobre o espiritual. É, também, a prova  da ausência do pensar nos homens. É necessário ficarmos atentos e vigilantes em relação a esse tipo de postura �€ “ a tentativa de descriminar e de fazer uso de membros da nossa espécie para servir a fins particulares. Vida humana (em qualquer forma ou aparência) possui igual valor, matar um ser humano é sempre errado. Se não lutarmos contra esse tipo de barbárie, em breve, o próximo passo será permitir que os pais e o Estado assassinem bebês e adultos, caso não gostem de suas aparências, ou porque são deficientes, negros... Nenhum ato de destruir a vida humana deve ser legitimado mesmo sendo legal.
Um feto, como disse Warnock em Os usos da filosofia (1994), é um membro de nossa espécie na medida em que é um ser em separado. Ser legal ou permitido, não significa ser correto. Não significa eximir-se da culpa do ato. É preciso ficar claro que, acima da lei existe a consciência moral que nos diz, constantemente, se agimos certo ou não; voz interior que prescreve o que devemos fazer; algo que nos possibilita a não permanecermos prisioneiros do presente e do real; nos permite conceber o futuro que poderá ser e o passado que foi ou que poderia ter sido. É, no fundo, estar um pouco adiante e um pouco atrás de si mesmo. Portanto, a lei não é a nossa consciência, ela deixou de exprimir, inclusive, a vontade da maioria para exprimir a vontade e o interesse particular. O que é legal ou permitido pode ser contra a consciência. Ser absolvido pela justiça legal e condenado pela consciência moral é, para o homem, o pior de todos os pesadelos. É como disse Juvenal emSátiras completas  (1943), “nenhum culpado pode ser absolvido pelo tribunal da própria consciência”. Portanto, a lei não dispensa o julgamento solitário. Os médicos, os legisladores, os deputados não podem julgar em nosso lugar. Uma lei a favor do aborto equivale a uma sentença e a uma execução capital de uma pessoa inocente, embora o horror seja duplamente dissimulado com formulações ambíguas, como “a interrupção voluntária da gravidez”, e com o sistemático e trágico artifício, de fazer passar o “crime” como se fosse um “direito”. Este jogo não apenas de palavras, mas repleto de efeitos trágicos, abre profundas f eridas na própria verdade. Assim, a verdade é aprisionada e sufocada, enquanto a vida é espezinhada no pior dos massacres!
A morte de um ser humano importa, mesmo que seja um embrião de dois meses de idade. Abortar não é a mesma coisa que matar uma vespa ou até mesmo um gatinho; é a eliminação de um membro da espécie humana, embora em estagio embrionário. Para se ter uma idéia, na Índia, por exemplo, a preferência dos pais por meninos, provoca cerca de 500 mil abortos de fetos do sexo feminino todos os anos, de acordo com um estudo publicado recentemente. Nos últimos 20 anos, este número ficou por volta dos 10 milhões. Coisas absurdas (assassinato de um bebê no útero) são admitidas tranqüilamente numa sociedade materialista e sanguinária. Vivemos um momento obscuro e triste. O próprio direito parece não considerar mais a prioridade da pessoa humana, em ordem ao bem comum e ao respeito dos seus direitos, a partir dos direito s dos mais frágeis. Por isso, como disse Ihering em A luta pelo direito (2001), é necessário “lutar” por ele.  O que não quer dizer, necessariamente, defendê-lo e aceitá-lo. Às vezes é necessário opor -se a ele, negá-lo e expô-lo. É necessário duvidar do direito para que a justiça reine. Pois, como ensinou Alain citado por Huisman e Vergez em Curso moderno de filosofia (1976), “a justiça é essa dúvida sobre o direito que salva o direito”.   Talvez um dia, assim como aconteceu com a escravatura e as descriminações raciais, uma consciência lúcida, amadurecerá e fará nascer um sentimento de vergonha pelos crimes cometidos e permitidos contra a vida humana nascente. Então, multiplicar-se-ão as conversões pela proteção dos nascituros.

José João Neves Barbosa Vicente – josebvicente@bol.com.br
 Filósofo, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

1 comment:

Anonymous said...

Este é um pensamento refinado, com esmero e maestria. Um grande filósofo de Cabo Verde que faz diferença o mundo.
João Manuel Branquinho
Filósofo, UC- Universidade de Coimbra

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