Liderança cristã e solidariedade
“Servir já é reinar” (Eugene Peterson)
Moisés foi criado no palácio do Egito, como filho da filha do Faraó. Aos quarenta anos, fugiu para o deserto, por ter assassinado um egípcio que contendia com um hebreu. Tentou defender o hebreu. Pagou um preço alto por identificar-se com um escravo contra a opressão do escravizador.Aos oitenta anos, Moisés não era sombra do que fora. Seu dia-a-dia resumia-se a cuidar do rebanho de seu sogro. O deserto, lugar de isolamento e luta pela própria sobrevivência, tornara-se seu ambiente e sua companhia. Tinha visto de tudo, até se encantar com uma sarça que ardia sem se deixar consumir. Deus estava na sarça.Deus apresentou-se como Deus dos antepassados e comissionou Moisés para tirar os hebreus da escravidão no Egito. Tocou-lhe a ferida. Fez-lhe lembrar dos dias áureos e do desmoronar de tudo quando, uma única vez, tentou proteger um hebreu contra um egípcio. Como, agora, quarenta anos depois, pedir-lhe que voltasse e repetisse o erro?“Eu sei o que meu povo está sofrendo” – disse Deus a Moisés. Não pediu que Moisés esquecesse o passado ou que considerasse as vantagens de uma proposta promissora. Simplesmente, afirmou saber o que se passa com quem sofre. Sabia como Moisés se sentia. Acompanhou-o em todos os momentos. Sustentou-o quando imaginou estar só e ainda tinha um propósito todo especial para o seu coração. Aos oitenta anos? Sim. Nunca é tarde. Nas palavras de Emmanuel Levinás, “o presente é começo puro”.O desafio da liderança cristã passa por esse nível de solidariedade. É um reconhecimento, antes de mais nada, da própria solidariedade de Deus. Não se trata do poder que tem para livrar ou dos planos soberanos que tem para realizar. Trata-se, acima de tudo, do amor com que olha para os angustiados, abatidos e oprimidos. Moisés não estava sendo chamado para ter pena de si mesmo, mas para associar-se com Deus na maravilhosa oportunidade de compadecer-se dos outros. O líder cristão precisa ser solidário. Não foi chamado para sentir-se importante ou recompensado pelos fracassos de outrora. Foi chamado porque há uma necessidade: ovelhas estão sem pastor. Enquanto há muitos perguntando “por quê”, Deus procura quem possa responder-lhe com um “para onde”. Para citar Dietrich Bonhoeffer, “quem, alguma vez na vida, já experimentou a misericórdia de Deus, dali por diante só desejará servir”.Moisés esteve frente a frente com o desafio de ser participante da solidariedade de Deus. Recebeu a graça de somar-se ao projeto que culminou na revelação de Cristo: prova maior do amor de um Deus que se importa com a humanidade. E se não há maior compaixão que sofrer a dor do outro, em seu lugar, não há maior compaixão que aquela demonstrada na cruz. Para lembrar John Stott: “Como pode alguém olhar para a cruz e ver somente a vergonha do que fizemos a Cristo, em vez da glória do que ele fez por nós?”.Moisés aceitou o desafio e foi uma bênção. Libertou um povo todo e redimiu a si mesmo, seu próprio passado. Curou seus traumas. Descobriu que, ao servir, tornava-se o primeiro beneficiário do serviço. Não por interesse, mas pela graça de Deus. Descobriu que, sendo instrumento, tornava-se mais e mais realizado. Voltou a ser uma pessoa inteira. Já não precisava de palácios, estava definitivamente em casa.
Marcelo Gomes Publicado em 17.10.2007
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